quarta-feira, 17 de junho de 2009

A última testemunha da noite

A noite deixará de existir.
Existe uma antiga questão filosófica: se as árvores caem na floresta, e não há ninguém para vê-las cair, será que elas caem mesmo? A pergunta retórica deriva da noção de que o mundo só existe a partir de uma percepção inteligível. De acordo com essa noção o fenômeno só existe a partir da observação e interpretação do ser.
Eu poderia me deter em várias refutações materialistas para tentar estabelecer a dimensão objetiva e independente da realidade, porém quero fazer o contrário. Para explicar o contexto que me aflige quero partir da veracidade da noção explicitada acima.
Acho que sou o que resta da boemia, portanto posso falar com propriedade. A cada dia vejo a noite se esvaziar. Vejo aquele ambiente que sempre foi criador, contestador, sedutor, desafiador, dia após dia, mês após mês, definhar.
Estamos perdendo a noite. A noite das serestas, das serenatas, dos feitiços e dos romances, dos poemas e dos mistérios. Estamos perdendo a noite para a ignorância. Com a noite perdemos toda uma fauna própria. Há criaturas que só vivem a noite. Perdemos a democracia dos bares, onde todo conhecimento é compartilhado.
Pra onde foram os poetas de alma aberta? Onde se cantam as canções que não toleram a luz? Pra onde voaram as feiticeiras e suas vassouras? Aonde chora suas mágoas a boemia de outrora? Mesmo os simpáticos demônios que negociavam almas não se encontram mais.
Aos que se arriscam a observar, só resta na noite seres desprovidos de qualquer racionalidade, violentos e mesquinhos. E mesmo estes são raros. Reformulo pois a questão retórica: se a noite existe, e não há ninguém para vivê-la, continuará ela existindo? Para mim sim, mesmo que eu seja a sua última testemunha.

5 comentários:

Gungi disse...

amigo xiquito, não se atenha ao nossa querida e mesquinha Guarapuava, ainda existe a bela noite, mas não aqui

Unknown disse...

O declínio que já vinha há tempos atingiu seu auge. É o pós-modernismo, tudo culpa do pós-modernismo. Mas em breve haverá outra vanguarda... Fé.

Tatiana Lazzarotto disse...

Gostei da sua constatação. Acho que já vi essa questão em um filme, sobre a existência e a percepção inteligível. Mas concordo com o depoimento acima. Guarapuava não é base para essa análise. A noite ainda existe.

Michele Matos disse...

Mas a noite continua. Disposta a inspirar os poetas que têm preferido dormir.
Belo texto ermão da Lay.

Drica disse...

Em Guarapuava até os boêmios se rendem...