segunda-feira, 29 de junho de 2009

Mensageiro

Vá. Conte que me conheceu no passado.
Fale que eu sou um jovem que não é mais tão jovem e que fora promissor, mas que me deixei seduzir pela mediocridade.
Diga a ela que talvez, com alguma insistência, possa se encontrar algo de bom em mim.
Sei que ela não acreditará, que nada que enxerga em mim pode lhe trazer interesse. Porém creio em seu poder de argumentação.
Fale do tempo antigo, quando conversávamos nas noites sem fim, quando havia mistério na bruma. Daquele tempo em que o mundo era desconhecido e podíamos sentir o crepitar da geada sobre nossos pés quando voltávamos pra casa.
Dirá ela que esse tempo não existe mais. Você afastara os cabelos do seu rosto.
Use aquele olhar que sempre convenceu. Se for preciso minta.
Puxe uma folha, faça um desenho, uma fórmula estatística talvez. Narre aquela história sobre o velho burguês condenado embora inocente, e que não viveu para conhecer a justiça.
Explique que não sou responsável pela malícia dos meus gestos. E que a malícia não é nada mais do que o desejo vulgarizado.
Quando, esgotados seus argumentos, você ainda encontrar indiferença naquele olhar, diga adeus. Conserve uma certa expressão de angustia, mas não muito forte. Vire-se a caminhe, não sem voltar a face, com um leve sorriso melancólico, a uns cinco passos de distância. Depois não olhe mais.
Quando estiver distante o suficiente para saber que suas palavras só chegarão como sussurro, sem se virar, diga que estarei sempre esperando.
Volte, esqueça tudo isso, e não me conte o que aconteceu.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

A última testemunha da noite

A noite deixará de existir.
Existe uma antiga questão filosófica: se as árvores caem na floresta, e não há ninguém para vê-las cair, será que elas caem mesmo? A pergunta retórica deriva da noção de que o mundo só existe a partir de uma percepção inteligível. De acordo com essa noção o fenômeno só existe a partir da observação e interpretação do ser.
Eu poderia me deter em várias refutações materialistas para tentar estabelecer a dimensão objetiva e independente da realidade, porém quero fazer o contrário. Para explicar o contexto que me aflige quero partir da veracidade da noção explicitada acima.
Acho que sou o que resta da boemia, portanto posso falar com propriedade. A cada dia vejo a noite se esvaziar. Vejo aquele ambiente que sempre foi criador, contestador, sedutor, desafiador, dia após dia, mês após mês, definhar.
Estamos perdendo a noite. A noite das serestas, das serenatas, dos feitiços e dos romances, dos poemas e dos mistérios. Estamos perdendo a noite para a ignorância. Com a noite perdemos toda uma fauna própria. Há criaturas que só vivem a noite. Perdemos a democracia dos bares, onde todo conhecimento é compartilhado.
Pra onde foram os poetas de alma aberta? Onde se cantam as canções que não toleram a luz? Pra onde voaram as feiticeiras e suas vassouras? Aonde chora suas mágoas a boemia de outrora? Mesmo os simpáticos demônios que negociavam almas não se encontram mais.
Aos que se arriscam a observar, só resta na noite seres desprovidos de qualquer racionalidade, violentos e mesquinhos. E mesmo estes são raros. Reformulo pois a questão retórica: se a noite existe, e não há ninguém para vivê-la, continuará ela existindo? Para mim sim, mesmo que eu seja a sua última testemunha.